sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A SIC Mulher encadeia-me os olhos


Ninguém é excepcionalmente inteligente ou louco solitário quando afirma, no meio da manada, não suportar programas de canais generalistas ou temáticos – estes últimos que permitem dividir por categorias o tipo de trampa que estamos mais predispostos a ver em dado momento para rentabilizar melhor o tempo (embora ninguém que se amarfanhe no sofá, estilo alforreca, apresente sinais convincentes de ter amor ao tempo útil).

Sendo uma idiotice batida, ainda assim eu insisto em falar em mediocridade televisiva porque há um programa, em particular, que sempre me incomodou. A maioria deixa-me indiferente e consigo mudar mas aquele desperta-me desespero e vontade de partir paredes falsas e chamar o MacGyver para engendrar uma bomba com velinhas de cheiro e incenso nos bastidores.

A consistência que alimenta a coisa é: existe alguém que tem uma casa que não lhe agrada porque se cansou do estilo, ou não teve condições de investir na manutenção, ou era uma casa enorme e acima das possibilidades/necessidades, ou a casa da vizinha e da novela é “tããoo mais linda que a minha”, ou ainda (neste caso seria eu a solicitar) porque quer pregar um susto de morte a um familiar ou amigo e entrega a residência a um bando de gays e trintonas loucas, especializadas em revestimento delicodoce de madeira palha. O investimento fica a cargo das marcas que têm os seus minutos de fama, as pessoas “ganham” uma nova decoração e o canal televisivo ganha programação para encher muitas horas.

O programa pode ensinar-nos então algumas das manias que as pessoas têm, entre as quais: convicção de que alguma entidade externa e desconhecida consegue revolucionar o nosso bem-estar muito melhor do que nós próprios; ilusão de que um capricho ou mudança de humor, ou mesmo uma necessidade, pode ser respondida no imediato e sem grandes custos; ideia de que existirá sempre, algures, alguém desinteressado que nos paga almoços porque nos quer melhorar a vida, só porque sim; e mania de gerir a vida a toque de entusiasmos rápidos sem capacidade de ponderar desvantagens e desconfortos a longo prazo. Visto isto, diríamos que o programa até é bom porque nos ajuda a pôr em evidência estas tendências que se aplicam a outras áreas. Mas assistir a isto em bruto…

Como digo, todos ganham mas os indivíduos que são servidos no programa ganham entre aspas. Ganham a intromissão de gente em casa que teve aulas práticas em casas de bonecas com mestrado em bibelôs. Eles agarram nas grades mais inúteis que já tivemos na nossa vida, ao fundo do quintal, e pincelam a rosa choque; rapidamente aquela grade ferrugenta onde a nossa cadela sempre entalava o pescoço, ganha mais cor e isso surpreende-nos muito. Abrem um furo para pendurar um expositor de talheres na cozinha mas rebentam-nos os canos mas – “Rápido, tragam-me um quadro do Mário Cesariny! Fabuloso, olhe, mal se nota”.

Acho que isto basta para deixar bem representado o cenário de improvisos almofadados, durabilidade de ikea, ambientadores inibidores da podridão, células mortas envernizadas, sobreposição forçada de elementos exóticos e padrões afeminados que nos dão vontade de enfiar a cabeça no primeiro abajour que aparecer à frente. Até os cenários do cinema western conseguem parecer mais consistentes que aquela fragilidade pintada a verde alface, flores de plástico e os cristais Vista Alegre que ninguém usa para comer os cornflakes ao pequeno almoço. Ou os sofás de jardim que se enchem de húmus no Inverno enquanto as barraquinhas voam para o quintal da vizinha.

A obsessão com a mudança radical à responsabilidade de terceiros, o investimento (nem que seja a crédito) sem questionar a verdadeira utilidade e a indiferença perante o risco iminente de desmoronamento são sinais que estão no "Querido Mudei a Casa" e em todo o lado. Simplesmente, a maioria das pessoas não pensa duas vezes antes de delegar funções ao primeiro larilas que se diz especialista mas nunca teve de aspirar a desviar-se dos emplastros ou que não tem miúdos em casa que levem com o Buda na mona depois de tropeçar no candeeiro em forma de papoila gigante. A megalomania e os papéis de parede coloridos só tapam as paredes de terra batida entre pessoas que não percebem que depois do programa, depois de dispensar o acessório e as distracções – vidrinhos, espanta espíritos, gaiolas vazias e velinhas – deixaram que lhes construíssem um lar à base de prateleiras padronizadas e baratas. Ninguém dá nada a ninguém e ninguém sabe melhor gerir e decorar a vida do que nós próprios. Até nisto, as lições começam em casa.

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