quarta-feira, 4 de julho de 2012

O Legado do Poder Local em Risco?


Uma ideia frequentemente veiculada pela agenda política e entre a opinião pública é a de que existe, de facto, um excessivo peso da administração pública mas a raíz desse problema reside, em parte, na preservação de uma estrutura ultrapassada com numerosas unidades inúteis que devem ser racionalizadas segundo orientações centrais para, por fim, harmonizar o território e monitorizar potenciais abusos de corrupção local. Nestes termos, conceder autonomia efectiva e funções às instâncias inferiores seria promover a divisão num país já por si pequeno e que deve valorizar antes a unicidade interna.

Esta interpretação parece ver o problema do avesso e incorre na maximização das causas que proporemos aqui combater. O centralismo é a marca dominante que foi incutida ao modelo administrativo português e tem vindo a privar os indivíduos da capacidade de se comprometerem com a sua comunidade e de criarem hábitos de negociação em reciprocidade de benefícios que viabilizassem alternativas de mercado para suprir as necessidades particulares. As competências locais são niveladas por um mínimo denominador comum em prejuízo das economias locais e nos ganhos totais do país, e as transferências partem do mesmo "bolo" do Orçamento de Estado, com tendência a expansão despesista para gerir dimensão política. Conhecendo o despesismo incontrolado a nível nacional (com os mesmos incentivos e dificuldades adicionais de accountability) parece legítimo manter cepticismo quanto a limites, fixados por lei, para disciplinar despesismo local. O que não seria raro de encontrar proposto até por liberais que parecem accionar a ingenuidade quanto à natureza humana, no momento de travar os salteadores em momentos de asfixia orçamental. O nosso ponto central é que transferir funções para uma ordem superior, mais abrangente e distante, quando essas funções podem ser executadas e um nível mais básico de instâncias inferiores é uma deturpação do equilíbrio sustentado, no tempo e no espaço, numa dada comunidade de interajuda e confiança. Essa centralidade gera mais grupos capazes de desviar recursos para alimentar megalomanias públicas ou interesses pessoais e se isso acontece a nível local não há particular iniquidade nisto mas sim incentivos perniciosos centrais que alastram até às instâncias mais básicas.


As unidades administrativas que designamos, e repensamos hoje, como freguesias remontam a uma experiência histórica de séculos, fundada na necessidade de socialização e cooperação e incutida de valores agregadores de sinergias internas que foram inscritos na ordem territorial, muitas vezes com reflexos de rivalidades fronteiriças em defesa da própria comunidade. Tendo o seu processo embrionário entre a romanização, e a sua derivada componente cristã, as freguesias desenharam-se pela organização paroquial e em torno das primeiras manifestações religiosas peninsulares, tanto em aglomerados urbanos como em zonas predominantemente rurais. A titularidade de cidade, aquando da Reconquista Cristã e a definição territorial ao longo do século XIII e XIV, perseguiram a necessidade de delimitar as freguesias, numa realidade ainda imaculada de racionalizações e simplificações gerais, contudo, só no século XIX, já sob domínio do ideário republicano e laicista, as freguesias passaram a ser abrangidas na organização administrativa portuguesa.

Para uma detalhada e completa descrição da história das freguesias em Portugal, que não nos cabe aqui desenvolver, pode ser sugestiva a leitura de As Freguesias: História e Actualidade, de José António Santos, o qual citamos a propósito da importância das freguesias que extravasa, em larga medida, o domínio religioso: As paróquias ou freguesias têm a seu crédito o exercício de importantes funções locais atinentes ao quotidiano da vivência das comunidades respectivas. (...) Desde os primórdios, em colaboração nomeadamente com outras instituições da Igreja, inclusive as monacais, a sua acção está presente em múltiplos campos da área social, com relevância directa ou indirecta e em maior ou menor grau, nos concernentes a desempenhos de beneficência, instrução público, orfanatos, misericórdias e hospitais, actividades exercidas quase sempre em substituição ou em complemento do próprio Estado.


Como será de fácil ilacção, o desenvolvimento das freguesias não se deu ao acaso ou por decreto superior. Deu-se adjacente às condicionantes que levaram à permuta de serviços, emergência das actividades agrícolas possíveis, aproveitamento e partilha de certos bens e equipamentos. Estas interacções só eram possíveis perante a consciência da vantagem na colaboração e, tal como agora, parece um argumento frágil apontar que a reforma no sentido do fortalecimento e autonomia dos municípios envolveria mais despesa para o Estado numa altura de contenção. Se a administração central deixar de encerrar em si uma panóplia de competências passíveis de delegar aos municípios, deverá deixar de utilizar os respectivos recursos, já que esses ficariam afectos a quem ficar com as atribuições, sendo previsível também que as despesas acabem por descer, a longo prazo, graças à resolução menos complexa dos problemas, ao encurtar do tempo de resposta, à menor perda de sinais de mercado e ao refreamento da disfunção burocrática.

Depois do referendo de 1998, ignorado talvez pelo desadequado mapa das regiões proposto ou pela irrelevância na forma como foi problematizado e debatido, tentando homogeneizar o que não quer ser homogeneizado (pelo menos por imposição superior), permanecemos conformados perante a falta de desconcentração da gestão, perante a ausência de colaboração ligada por instâncias intermédias e perante o programático da nossa CRP que, formalmente, consagra a administração pública como sendo estruturada de modo a evitar burocratização, a aproximar serviços das populações e assegurando que os interessados participam na gestão. Enunciados sonantes não faltam e, para além da inconsequência destes enunciados que preconizam descentralização e subsidiariedade, a discussão fica desprovida de utilidade quando se centra essencialmente em números e reformas feitas em cima do joelho por pressão orçamental, em vez de centrar a atenção nas atribuições que permitiram colmatar desperdício de recursos e a participação efectiva e expressamente interessada.

Perante tudo isto e reconhecendo a necessidade de cortar nas despesas que a nossa administração pública encerra, a solução para este problema passa por dinamitar o foco que mais controla e mais consome e, por outro lado, impedir uma táctica de "terra queimada" promovida por Lisboa que tenta, a todo o custo, convencer o país de que os pecados são cometidos por autarcas e que urge afastar os recursos do egoísmo e irresponsabilidade das populações locais. Estamos conscientes de que a prevalência de um modelo centralizado e autista em Lisboa gera ainda mais distorções das capacidades regionais, (como pode ser observado globalmente pela conhecida transferência de riqueza do Norte excedentário e competitivo para a Lisboa, dominada pelo sector dos não transaccionáveis e acumuladora de défice). Devemos, numa concepção que privilegia o indivíduo e a continuidade das suas relações em comunidade, defender uma extensão progressiva das competências a nível municipal como centros de decisão facilitadores de negociação na provisão de ensino e formação profissional, transportes, favorecimento de uma política voluntária de ordenamento do território, laboral, colaboração com empreendimentos empresariais, e gestão mais responsável do património administrado pelas autoridades locais.

A capacidade do Estado central captar receitas, no quadro preferencial da descentralização fiscal, vê-se restringida pela acrescida vigilância dos indivíduos perante a expectativa de retorno pois estes estarão mais conscientes dos montantes tributados e da aplicação dos mesmos. Também controlarão melhor usurpadores da renda alheia, em defesa da propriedade, abster-se-ão de usurpar porque a punição social e a perda de prestígio social envolve um custo irreversível e absurdo, e ainda, verão facilitada a comunicação com os prestadores de serviços, favorecendo as alternativas mais vantajosas. Gostos, capacidades produtivas, diversidade cultural, características demográficas e aspirações diversificadas, insondáveis a qualquer planeamento central, definem procuras e ofertas muito específicas e a qualidade da resposta não se coaduna com critérios de equidade, solidariedade e desenvolvimento económico nivelados e impostos pela capital, especialmente quando Lisboa serve de altifalante à embaraçada argumentação estritamente político-partidária que revela pura resistência para conservar os cerca de 80% de funcionários concentrados na administração central.

Todos os interesses que deviam ser zelados por municípios estão à mercê de um ministro que reside em Lisboa, e que nem os conhece, nem devidamente os aprecia. Daqui resulta o predomínio da capital sobre as províncias, a pouca vida política destas, a sua anulação, e quase nenhuma acção sobre os negócios públicos; enfim, daqui vem a influência funesta de certos homens que, colocados pelo acaso, ou pelos cálculos da sua ambição, no foco onde se concentram todos os poderes, lançaram mão deles, e subjugam por este modo o reino, que pode, mas que já lhes não sabe resistir.

Alexandre Herculano – Opúsculos, Tomo I, Edição de Joel Serrão, Livraria Bertrand, 1983



Numa época de proximidade, imediatismo, trocas e deslocações encurtadas, valerá a pena repensar a proximidade dos municípios e freguesias, não como empecilhos retrógrados mas como células estratégicas em plena e prudente ligação com outras unidades. Só conscientes das capacidades endógenas e perto da agregação de interesses, como atenuante de alguns danos inerentes ao contexto democrático poderão ser viabilizadas alternativas de mercado que desviem o abusivo tentáculo do Estado. A diferença está em perceber que a solução, mesmo no recente Documento Verde, não pode partir de cima mas deve, isso sim, seguir uma coordenação territorial mais negociada entre as partes no local, na posse de informação valiosa e que não esqueça a importância do financiamento local como travão ao caciquismo. Quando a vontade de colaborar com outros grupos parte da base, assente nas próprias escolhas, reflecte a importância de laços familiares, redes de contactos profissionais, comunhão dos mesmos cultos, trocas comerciais e uma multiplicidade de outras relações civis que se cristalizaram num certo território. Partindo dessas escolhas autónomas é possível então explorar concertação horizontal e rede de parcerias voluntárias, na formação de capital social. Será crucial perseguir este ideal mesmo se o Estado central, amanhã, acenar com o lançamento do último "grito tecnológico" da versatilidade na captação de informação, prometendo um sistema de cálculo de outputs infalível e unificado que substitua os elos de proximidade. Simplesmente porque a experiência histórica não compactua com promessas paradoxais.
Publicado inicialmente no Movimento Libertário

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