segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Não costumo fazer descrições da rotina, porém contudo…

Aqui à minha frente, a jovem revê as suas próprias fotos há pelo menos uns 40 minutos…vai editando as melhores partes, se as tiver. Do outro lado do corredor a morena trintona, de mão elegante no queixo finge que redige alguma coisa no word, olhando o corredor de cima a baixo de 10 em 10 segundos, enquanto exibe as pulseiras e o suposto anel de noivado, com aquele ar imponente de “vejam, não dão nada por mim, nooo entaaanto!…”. Cerca de 60% dos passageiros vão a tentar dormir e uns 10% fazem uso dos óculos escuros para topar clandestinamente as curvas, do trajecto, as curvas do trajecto. Cerca de metade dos ocupantes da carruagem trazem consigo os indispensáveis auscultadores, esses oásis da paz e da saúde mental.

Os passageiros mais velhos olham a paisagem pela janela baça, de braços cruzados em cima da barriga, enquanto são ofuscados pelos raios de sol de frente ao fim do dia, cortados em maquinais intervalos que irritam, mas que eles já toleram. Ao meu lado, uma aparentemente académica, tenta ler a Viagem do Elefante do Saramago….leu 3 páginas e fechou agora. Não acredito…como conseguiu ler tanto. Ena, movimento! Emoção na carruagem! Lá mais à frente, um discreto litígio porque um deles quer ver a paisagem e o outro quer descansar e não suporta a luz…é a disputa pelo cortinado! Este aqui mais perto, dos seus quarenta anos, ergue o jornal com ar seguro e regular, distante da multidão, um certo ar de alheamento intelectual. Eis que parou…por hoje foi tudo, amanhã absorves mais um pacote de ração informativa.

Há pessoas que apreciam a viagem despreocupadas e outras que só querem chegar rápido ao destino e perguntam até ao funcionário, a hora exacta de chegada. Para onde será que vão a seguir? Os lugares junto da janela são bastante apreciados…mais um bem escasso que faz com que os menos agraciados passem a viagem a levar cotoveladas e caneladas, contorcem-se no assento e tentam espreitar o exterior por cima do passageiro junto da janela. É aborrecido andar de comboio? Bem, reserva tanto divertimento como quase qualquer outro sítio: pouco ou nenhum. Custa menos quando não vai a engonhar, parando em todas as estações e apeadeiros.

A melhor coisa da viagem de comboio…Essa é fácil. É ver a acérrima defesa do lugar marcado pelo qual se pagou! São os melhores momentos de contacto entre os passageiros e de manifestação da instintiva e repentina defesa da propriedade. Os melhores do melhores são os que se recusam a prosseguir viagem enquanto não reaverem o lugar que lhes pertence. Raramente é preciso chamar uma autoridade e chega-se a um acordo, ali na hora, sem grande aparato. E o que mais me incomoda, (para além de quase tudo, incluindo as casas de banho, que são de todos e não são de ninguém e que não me atrevo, por isso, a visitar) é o funcionário, para cima e para baixo, com cara hostil, a justificar a utilidade, pouca claro.

Queixo-me de andar muito de comboio, é verdade. Pensando bem, acho que afinal, nunca estou fora do “comboio”.


1 comentário:

  1. Gosto. Também faço análises dessas de vez em quando. É giro ver que num espaço tão pequeno cabem histórias de vida que ocupariam volumes de uma enciclopédia. Boa ideia para um próximo post :)

    ResponderEliminar