“Um dia, no Império da Patagónia, o avô Constantino comentava com os seus doze filhos ao serão: há 40 anos só nos aguentámos graças a eles…para além de nos protegerem lá dentro durante alguns meses de incursões violentas, os Justinos conseguiram salvar 500 volumes do incêndio, de um total de 1200 que foram copiados com tanta dedicação ao longo de 150 anos. Alguns dos originais que eles copiavam já tinham mais de um milénio e eram quase ilegíveis. Valendo-nos isso, ainda conseguimos reerguer tudo no território circundante. Não foi a primeira vez nem será a última, longe esteja o agouro! Conseguimos concertar os moinhos, refazer o sistema hídrico, os fornos, a mina e voltar a cultivar os cereais na hora e dose certa com os truques que só estes livros sabiam. Claro que algumas pessoas mais velhas também sabiam mas nem todos ficaram para contar a história. Tivemos perdas mas elas teriam sido maiores sem as técnicas que usámos para os pôr a mexer daqui para fora! Em meio de tanta confusão e violência pouco calculada, ninguém se teria lembrado daqueles pormenores valiosos.” – e dizendo isto, Carlos impressionara os filhos com o relato guardado de um dos seus antepassados que vivera tempos de maior escassez e os usuais, mas duros, desafios militares. Carlos sabia que aquilo que os mantinha inseparáveis e resistentes era tão indescritível como merecedor de respeito. Uma sabedoria que esmagaria a petulância do mais insignificante e insano exemplar de uma simples geração; porque a própria geração é insignificante e simples. E confunde-se ainda mais quando despreza a experiência e abraça retrocesso.
Passado cerca de século e meio,
um bisneto de Carlos aplicara o que ouvira mas aplicara mal. Em tardes de
frustração e pouco talento para actividades típicas de um homem da sua idade e
condição, deleitava-se na crítica pela crítica e orgulhava-se dos próprios
becos de raciocínio em que se enfiava. Deu largas à imaginação e deturpou os
ensinamentos recebidos, dando-lhes nova roupagem. As propostas que ele passara
para o papel eram imediatamente chocantes porque qualquer contemporâneo lhes sentia
o potencial destrutivo. O autor do livro era Francisco Patego e a aventura
insana entristeceu o seu pai e toda a vizinhança. Mas foi a própria inutilidade
do escrito e desconexão com a realidade que a reduziu ao esquecimento. Foi
suplantada por tudo o que existia de bom antes do Patego nascer. A aberração, mais que
evidente, escrita pelo inconsequente Francisco Patego, não impediu porém que
ela fosse reproduzida e lida por outros curiosos ao longo dos anos. Convém
lembrar que, como qualquer outro, também o escrito do Patego estava imbuído do
espírito herdado, mesmo que a intenção fosse contrariá-lo. A criatividade não
pode escapar ou deturpar coisas que sempre existiram.
Um dos incautos que leu aquele
escrito insignificante foi António Inteligentis, um homem que gostava de pensar sozinho. Tinha olhado com desdém para o que a família lhe ensinara, largou os
estudos e fixou-se no livro do Francisco Patego que tinha já 200 anos desde que
fora escrito. Uma obra clássica memorável aos olhos de Inteligentis e que transmitia os vícios do seu tempo, dizia ele. Usou-a como base
para criticar e menosprezar tudo aquilo que sempre desgostou no mundo. A
verdade é que as ideias do livro já tinham influenciado a geração do António Inteligenstis
e ele precisava de culpar alguém de forma convincente. Seus curtos 45 anos de
vida, para muitos de uma inteligência inquestionável e messiânica, deixaram
algumas obras e a maioria debruçava-se na vida de Francisco Patego, suas
origens e influências. A grande conclusão de Inteligentis foi: os Justinos
mataram a civilização em que vivia e que tinha recebido influência do Francisco
Patego que, por sua vez, foi beber inspiração ao antigo Império da Patagónia. O assunto ficou arrumado.
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