terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Idiotas Úteis: O Pequeno-Almoço do Leviatã


O que pode tornar a vivência mais insuportável do que acordar todos os dias com um interminável novelo estatal mais embaraçado, viciado e pesado? O que pode ser mais desmotivador do que ser despojado de quase todos os mecanismos de resistência civil a uma democracia tirânica e distante que todos os dias confirma os receios dos mais pessimistas? Ocorre-me somente uma outra coisa que tem-me incomodado, ultimamente, com maior persistência: o tom pejorativo de alguns bajuladores do pulso forte do poder ao referirem-se às ideias libertárias. Questiono-me se estas pessoas chegaram agora de Marte e estão alheias à realidade, se têm parte no "negócio" ou se são somente agentes demasiado moles perante as mudanças graduais e pouco perceptíveis que sempre anestesiaram a maioria da população, de forma tão conveniente, seja na base ou nas elites. Tentando ser menos drástica, é possível que os bajuladores queiram apenas chatear "o miúdo mais pequeno do recreio" para fins recreativos.

No entanto, enquanto os tempos agudizam a tensão em estados endividados e descredibilizados, divididos entre os seus dois desamores - o embate com a moribunda capacidade de aumentar receita fiscal e a inaptidão para contrariar os grupos que têm na sua dependência, sem enfurecer o bicho nem gerar solavancos – existem ainda estas pessoas que consideram que o inimigo prioritário a combater é, pasmem-se, um movimento corajoso de ideias que vai denunciando as raízes, incentivos e dimensão da corrupção natural do poder político. É por repararmos nesse decadente treino de lealdade absoluta, confinada no servilismo ao Estado, seus múltiplos organismos seculares e seus capangas, por nos indignarmos com tal capacidade de papaguearem as lições, explicações, ordens e justificações oficiais, que chega a dar um certo gozo ver como o jugo acresce também em cima destes pregadores da brandura, dos meios-termos e da subserviência ao Estado de Direito e trâmites legais que ele nos oferece tão gentilmente. Alguns indivíduos nem de pancada se fartam.

Mas à semelhança do Sol que nasce sobre maus e bons e da chuva que cai sobre justos e injustos, também as fresquinhas ordenanças do nosso governo rebentam igualmente na vida daqueles que não se importunam com elas, antes as bendizem; aqueles que acham razoável entregarem ao desbarato metade do ano de trabalho nas mãos do governo; os que condenam os compatriotas por levarem a riqueza própria para outras jurisdições mais favoráveis; os que preconizam um país que só se reproduz a toque de cheques e fraldas oferecidas por autarcas; as que correm as casas todas das vizinhas a explicar que é preciso pedir factura para não deixar escapar malandros; os que se mentalizam com convicção de que é mesmo imprescindível renovar a carta de condução de 10 em 10 anos e ainda repreendem os amigos rebeldes; os que nem têm habilidade para reclamar diante de um mau atendimento em serviços públicos; os que aceitam de bom grado que se transfiram funções para instâncias supranacionais; e os que continuam a acreditar que introduzir concorrência em domínios como o fornecimento de energia, educação, saúde, etc, é um golpe mortal na dignidade e sobrevivência humanas à face da Terra – conta-se até que a extinção dos dinossauros deveu-se precisamente à liberalização das telecomunicações. Portanto, as novas ordenanças cobrem todos estes e outros imbecis.

Como disse Nicolás Gómez de Ávila, nos seus Aforismos, "o estado moderno fabrica as opiniões que recolhe depois respeitosamente com o nome de opinião pública". Só os idiotas úteis incapazes de avistarem horizontes temporais do passado mais ambiciosos do que a última refeição ou última ida ao supermercado, se orgulham de passear por aí com a elegância dos slogans asseados e obediência, maquinados pelos seus líderes contemporâneos.

Só os mais atentos percebem os perigos de uma progressiva totalitarização da sociedade. Quem já levou crianças à praia, até ao final da tarde, pode perceber como isto funciona. O efeito das ondas é semelhante aos sucessivos declínios e ascensões de poderes tirânicos. Pela manhã, ficamos entusiasmados com o amplo espaço livre. Depois da hora de almoço, caímos na moleza da digestão, da sesta e do sol tórrido e, ao cair da tarde, lá vamos recordando que é sensato ir levantando as coisas. E nisto, as crianças são as ingénuas teimosas que nos empurram para mais um mergulho porque nada se passa. Quando somos vencidos pela imprudência e olhamos para a areia, lá se foi a tralha, consumida pela ilusória timidez da maré a encher ao de leve. A expansão do poder do Estado reconhece-se da mesma forma: ou numa permanente atenção que tem consciência das experiências do passado ou, menos preventivamente, quando ficamos muito tempo sem olhar para o nosso objecto. O que trama as pessoas que negligenciam as cautelas diante do poder político é não poderem visitar a actualidade económica, fiscal, social, depois de transitarem de um período de 50, 100 ou 200 anos numa máquina do tempo. Nada que força de vontade e umas aulas de história não colmatassem.

Olhando em redor, por toda a parte encontramos passividade. Uma passividade que pode encontrar explicação na condição de anonimato em que nós, uns mais e outros menos, fomos confinados, depois de minados os compromissos, a vasta panóplia de lealdades próximas e, em geral, as unidades sociais com conteúdo e poder de resistência e cumplicidade contra a estatização da essência humana. Testemunhamos a passividade com que se aceita a aleatoriedade de novas regras administrativas, novos impostos e regulamentos que afectam o consumo e a relação entre consumidores e fornecedores, a vigilância e perseguição aos modos de vida e condição física dos cidadãos. Vamos começar por onde? Deixar o carro na garagem e andar a pé? Privarmo-nos de produtos com o IVA mais alto? Querem mesmo alterar rotinas pessoais por força das orientações governativas e para se sentirem bem com vós mesmos? Não há escape com pompa que valha a pena o esforço porque estamos sozinhos perante a discricionariedade do Leviatã, esse raptor que desforra até ao último pulsar de dignidade. A passividade descamba em fragilidade, de pernas e mãos atadas. O propósito nunca foi outro. E esta, hã? As políticas liberais vão matar-nos? Por ausência delas... calculo.

Publicado no Estado Sentido 

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