domingo, 4 de novembro de 2012

Inimitável

Não sei como deixei passar, mas ainda venho a tempo. O comentário de Pedro Mexia, na Lei Seca, ao soberbo concerto de Leonard Cohen, com o fascínio e reverência com que poucos o conseguiriam descrever. Eu reduzo-me a ficar imóvel na cadeira enquanto a voz do bom velho faz o tempo parar na entoação de sabedoria inabalável e polida humildade.

Quatro concertos em cinco anos, Cohen compensou-nos, e bem, da longa ausência dos palcos e do mundo, quase diríamos «bendito desfalque», aquele que o fez ter de andar de novo em digressão, vir até nós. Dos concertos portugueses, um foi excepcional (o de Algés: comunicativo, desapontado, divertido), mas nenhum foi mau, não é possível, com aquele catálogo, com aquela presença.

De fato escuro («a lazy bastard living in a suit») e chapéu, magro, envelhecido, impecável, Cohen é sóbrio, educadíssimo, afável, apresenta e elogia demoradamente os músicos, trata-nos por «friends», fecha os olhos, dobra-se, ajoelha-se, saltita, curva-se, agradece-nos, abençoa-nos. É romântico, lascivo, místico, cáustico, um charmeur de cinismo brando, agora pacificado, e de crenças antigas, de ideias velhas, actuais. Aos 78 anos, deu-nos três horas e meia de espectáculo, que ouvimos com reverência, festa, emoção, e há muito que Cohen tem direitos a coros femininos e a solos virtuosos, ganhou o direito de fazer o que quiser com a sua música e com a sua poesia. 

Desta vez, tocou canções de todos os álbuns que contam: «Suzanne» (um hino improvável), «Sisters of Mercy» (a mais casta das canções impúdicas), «So Long, Marianne» (a mais feliz das despedidas tristes), «Hey, That’s No Way to Say Goodbye» (e eu bem sei); «Bird on the Wire» (a simplicidade total), «The Partisan» (numa calorosa interpretação, a política abstractizada, comunitária, instintiva); «Famous Blue Raincoat» (a mais adulta, mais terrível, canção de amor de mão em mão); «I Tried to Leave You» (bom tema para encores e sarcasmos), «Who by Fire» (o mais polissémico verso de Cohen: «And who shall I say is calling?»): «The Guests» e «The Gipsy Wife» (canções «étnicas», etnomusicais); «Dance Me to the End of Love» (passe a redundância), «Coming Back to You» (Cohen deu voz às «sublime Webb Sisters», e de facto são), «Hallelujah» (e o Atlântico tornou-se bíblico); «First We Take Manhattan» («e depois Berlim», cantaram as massas), «Everybody Knows» (as males pessoais e os males do mundo, isto anda tudo ligado), «I’m Your Man» (masculinidade para homens inteligentes), «Take This Waltz» (Lorca vive), «Tower of Song» (Cohen pensionista da canção); «The Future», (um tratado de conservadorismo apocalíptico), «Waiting for the Miracle» (com a sardónica: «The Maestro says it’s Mozart / but it sound like bubblegum»), «Closing Time» (ideal para um falso final de concerto), «Anthem» (talvez o melhor verso de Cohen: «There is a crack in everything / That’s how the light gets in»), «Democracy» (whitmaniana, paradoxal); «In My Secret Life» (quem é que não tem uma?), «Alexandra Leaving» (com a possante Sharon Robinson). E do novo álbum, que ainda não ouvi suficientes vezes, «Going Home», «Amen», «Darkness», «Come Healing» (os títulos dizem tudo, é quase uma despedida).

Embora tenha falado pouco, Leonard Cohen disse-nos: «Espero encontrar-vos mais vezes no futuro». Ainda que não volte, fica prometido.  

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